quarta-feira, 31 de agosto de 2011

A insaciável



Já havia me acostumado a morar sozinho. Ser independente... mesmo em relação às mulheres. Porém, desde que ela entrou em minha vida conheci uma outra experiência de intimidade.
Desde então, sempre quando chegava em casa, após o trabalho, ela já estava a minha espera. Minha cama era onde nos encontrávamos, todas as noites... ali, eu sentia toda sua fome de mim. Fome e urgência do meu corpo, da minha pele... Adorava sobretudo meu pescoço, onde deixava as comprometedoras marcas de suas mordidas.

Não me dava trégua para descanso. Pouco importava se o dia havia sido exaustivo. Às vezes, não esperava nem mesmo que eu me despisse e já vinha com seus assédios. Nunca fez questão que eu me banhasse antes de me submeter aos seus desejos e caprichos. Desconfio que o cheiro de suor a atraía e a deixava ainda mais excitada.
Depois de algum tempo, percebi que aquele inusitado relacionamento poderia ser prejudicial e trazer consequências imprevistas. Minhas dúvidas começaram quando acordei, em uma manhã, e notei que haviam manchas de sangue sobre o lençol. Não sei dizer se o sangue era meu ou dela, mas aquilo, sem dúvida, já havia rompido os limites da violência aceitável e beirava a agressão gratuita e sem propósito .

Até então, os poucos tapas que desferia, sem destino certo, em meio à escuridão do quarto eram gestos até involuntários, respostas de minha carne e meus músculos ao apelo voluptuoso das garras dela...
Porém, foi depois do dia em que vi o sangue é que não mais consegui pensar em outra coisa, senão em acabar com essa relação, que já havia se tornado doentia.

Definitivamente, não falávamos a mesma língua, ela e eu. Diálogo não era o caminho nesse caso. Depois de muito pensar, encontrei-me resoluto: Matá-la! Do contrário, eu não mais viveria, pois já havia se passado noites e noites em que não dormia, prisioneiro do desejo dela. Desejo insaciável pela minha pele, pelo meu corpo...

Por isso, hoje, ao sair do trabalho, comprei o que será a arma do crime. Enquanto voltava para casa, cuidei de escondê-la, durante o trajeto, no ônibus. Poderiam perguntar algo, e eu temia revelar o impulso assassino que neste momento me toma por inteiro.
Enfim, chego em casa, dispo-me, em um rito... cheio de perversão. Há um sorriso em meu rosto, no entanto meus olhos estão úmidos. Alegria, alívio... Não sei dizer. Sei apenas que ela me espera em minha cama. Retiro o lençol que cobre o colchão e não hesito mais...

Disparo toda a carga contida na lata de inseticida, pois só assim me vejo livre dessa insaciável pulga que há dias me tira o sono.

Uma chave de linguagem



Em um de seus poemas, mais precisamente em um em que trata da própria poesia, Drumond nos questiona: “Trouxeste a chave?...” Diante desse seu questionamento nos sentimos instigados. Chaves são coisas úteis, pois abrem portas e nos dão passagens por onde antes havia a interdição. Por detrás de uma porta aberta pode estar a esperança de um abraço cheio de saudade, o significado do retorno e do reencontro ou, ainda, uma travessia que se insinua. O fato é que ter a posse de “uma chave” equivale a ter certo poder. O poder de abrir caminhos, desvendar mistérios, revelar enigmas... Abrir uma porta e, de repente, tornar visível o que estava oculto. No entanto, o questionamento de Drumond parece apontar para outro ainda mais fundamental, sendo a fala do poeta uma espécie de entrada para algo de outra ordem: que portas realmente merecem ser abertas? Quais os caminhos, entre muitos, serão capazes de nos seduzir de modo inescapável?

O poeta se vale da poesia para propor uma entrada especial pelos caminhos da busca existencial e identitária. A poesia como palavra-gesto que aponta para um bem valioso que trazemos conosco, embora permaneça, muitas vezes, em estado de segredo. “Trouxeste a chave?” Não qualquer chave, mas a exclusiva, aquela que dá acesso ao nosso tesouro mais pessoal.

Uma leitura possível do verso de Drumond é a de que no questionamento do poeta a linguagem se torna a própria chave a qual se refere. Assim como é característica de toda palavra poética, ela volta-se para si mesma, porém, ao fazer isso, revela uma verdade que a transcende. A palavra poética tem o poder de se confundir com o nome daquele que a lê. Por isso, ao dizer algo de si, diz muito mais sobre o mundo a nossa volta e sobre quem somos.

A palavra poética é esta palavra-chave que nos identifica com o que nos cerca e nos abre aos sentidos do mundo. Apelo irrevogável ao qual não se pode negligenciar, pois nele está o elo mais significativo entre a realidade particular de cada um e a realidade ampla da vida, onde existimos. Essa palavra é a linguagem em sua expressão mais fatal, evidência definitiva de que somos no mundo e na História. Ainda que esse modo de ser não seja uma certeza, mas um questionamento. “Trouxeste a chave?”

É preciso ouvir esse apelo em forma de questionamento. Talvez, por distração ou medo, tenhamos, muitas vezes, deixado de perceber que o poder para abrir a porta que esconde o segredo mais caro esteve sempre conosco. E que essa chave de linguagem a que o poema se refere tenha (por que não?) a forma, o som e o sabor de nossos nomes.


Luís Henrique da S. Novais






sexta-feira, 12 de agosto de 2011

O sério risco da leitura



Aqui vai um alerta: não leia, caso não esteja disposto a correr um sério risco. Evite as letras... livros, revistas, cartas de admiradores secretos ou de suicidas; bilhetes de pais preocupados, deixados à vista sobre mesas de cabeceira ou grudados em portas de geladeiras. Não seja ingênuo! Há um grande perigo nas páginas dos gibis e das revistas de mulheres nuas... na internet e em seus orkuts, blogs, twiters e e-mails da vida.

Não leia! Caso se considere um homem ou uma mulher prudente por demais. Fuja das letras e de seus tecidos-textos... são como redes: nos pegam pela curiosidade. Como peixes, mordemos com nossos olhos famintos, iscas que não saciam fome ou sede. Mas que fisgam e aprisionam nossa atenção, confundem nossa emoção e nossos sentidos, distorcem nossa visão, questionam nossa verdade; nos tiram de nossa segurança e nos lançam num mundo novo, desconcertado, onde não sabemos mais viver. As letras nos tiram o fôlego!

Não acredite em suas iscas, em suas pistas. São armadilhas! São jogos de sedução, seus enigmas e desafios. Pura estratégia para nos envolver e nos dominar. Falam de personagens como se falassem de cada um de nós, do que sentimos... de nossas esperanças e de nossos medos, de nossos sonhos e amores... de nosso mundo mais pessoal. Causam-nos pena e orgulho. Causam-nos espanto. Não sinta pena e orgulho. Não se espante. É tudo fingimento!

Não acredite nas letras, elas mentem o tempo todo. Contam histórias de aventuras improváveis, amores impossíveis, terras e mundos que nunca existiram. As letras não são confiáveis, definitivamente. Falam de olhos que encantam, de corpos imortais invulneráveis a tiros e espadas; de cavalos e homens que voam, de árvores e pedras que contam histórias, de monstros horripilantes e vampiros sangue-sugas, de seres fantásticos que seqüestram pessoas... para sempre. As letras abusam da nossa capacidade de acreditar.

Falam de decapitações, de guerras, de torturas e estupros, de incestos e assassinatos, de deuses e humanos adúlteros... As letras nos falam do mal e da maldade. Por isso, esteja avisado! Não leia caso se sinta inseguro sobre sua própria moral e seus próprios valores. As letras são subversivas. Atacam as religiões e os religiosos, as instituições... o prefeito, o governador, o presidente, o ditador... o pai e a mãe! As letras não sabem o que é respeito, o que é sensatez.

Mas...

Leia! Se você tem coragem o suficiente para se envolver. Envolva-se, se estiver disposto a se arriscar. Arrisque-se, se não é daqueles que temem viver o mundo desconcertado, mas cheio de paixão e novidade: o mundo das letras. Onde a vida é possível mesmo para quem experimentou a perda e a morte, mesmo para quem se desiludiu e ficou sem esperanças, mesmo para quem buscou a verdade por toda a vida, e só no fim descobriu que viver é que é a verdade inevitável.

Leia! Se estiver seguro de sua disposição para ir sempre além... pois não há chegada definitiva nem porto seguro nem divina morada para quem se aventura pelos caminhos das letras. Há, sim, um desejo que não passa... que incomoda, que tira o sono, que inquieta, que obriga a caminhar sempre. Há busca!

Leia se sentir a necessidade de partir. Para onde? Não importa tanto. Caminhar é preciso quando o mundo diante dos olhos tornou-se pequeno demais e os rostos de desconhecidos nas ruas tornaram-se familiares e sem novidade... quase sem vida. Quando a vida tornou-se previsível... o destino tornou-se previsível, o amor deixou de ser revelação... então leia!

Leia! Pois no fingimento das letras se encontra uma verdade... disponível apenas para quem não teme ser fisgado, seduzido pelo movimento dos sentidos e das palavras de um texto. Há uma verdade na mentira que nos contam as letras... os livros, os romances e contos, os poemas e as canções, as cartas, bilhetes e e-mails.

Neles o homem pode ir além do alcance de seus passos. Neles os gestos avançam para onde as mãos não alcançam, e sua mensagem dura mesmo quando a voz já se tornou silêncio no tempo. Nas letras, o homem dura mais que seu corpo, suas idéias e seus sonhos sobrevivem à sua frágil condição de ser-carne-osso. Nas letras, o homem rompeu o limite do tempo e estendeu a vida, afetando o futuro e trazendo o passado para perto. Nas letras o homem realiza o feito de mudar... e mudar... e mudar constantemente sua história.

Nas letras se encontra a possível descoberta de um mundo aberto diante dos nossos olhos e dentro de cada um de nós.


Luís Henrique da Silva Novais